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Canivete slip joint


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Um homem muito sábio certa vez disse que um dos grandes prazeres de um homem é poder usufruir de seu árduo trabalho.

 

Desde já, preço desculpas pelo monte de informação (talvez) desnecessária, mas é que me empolgo falando e gosto de dar detalhes.

 

Bem, decidi compartilhar mais uma das minhas experiências, dessa vez um canivete slip joint. 

 

Neste topico, alguns anos atrás, eu estava muito interessado em fazer uma faca artesanal, recebi muitas dicas. Em sequência nos comentários, fui relatando minha experiência ao fazer facas ao longo desses últimos anos.

 

Nesse tópico, relatei minha experiência fazendo uma faca Hunter de aço 5160 forjada. 

 

Bem eu tive ótimas oportunidades nos momentos certos. Depois de fazer algumas facas apenas pelo que vi na internet, conheci um vizinho que era cuteleiro a mais de 10 anos, ele muito gentilmente me ensinou muitas coisas e me ensinou a conhecer o "ponto correto" do aço para têmpera. Embora ele tenha graduação em farmácia, já havia lido muitos artigos científicos a respeito de tratamento térmico e realizado muitos experimentos (infelizmente vejo muita gente falando de têmpera quase como se fosse algo místico, receita passada de família etc, mas na realidade é uma obra de engenharia, então desconfie quando alguém falar coisas como essas). Ele também me ensinou o básico sobre geometria de fio (outra dica para quem quiser comprar uma faca artesanal, esse ponto é mais importante que a própria têmpera). E ainda por cima, me permitia usar a cutelaria que ele e outros amigos dele tinham criado, oportunidade ótima. Porém final do ano passado eles decidiram que cada um ia seguir seu caminho e cada um pegou suas coisas. Minha última faca que fiz foi uma yanagiba para mim. Desde então, estava tentando "sossegar". Mas sabe como é difícil né? 

 

Até que uns meses atrás um amigo veio me pedir conselhos pra fazer uma faca, me prontifiquei rapidamente a ensinar ele, mesmo com poucas ferramentas, pode ajudar ele a fazer uma faca. Não tenho muitas ferramentas, uma lixadeira angular, tinha uma forja de cimento refratário, uns jogos de lima e outras coisinhas. Bem é o "suficiente". 

 

Como eu moro em apartamento, essa foi uma ótima oportunidade de matar a saudade de fazer umas artes.

 

Já a cerca de um ano eu venho estudando a respeito de canivetes. E então me veio na cabeça, por quê não tentar um canivete?

 

Então escolhi um slip joint, que é um dia modelos mais simples de mecanismo, em minha opinião, depois dos friction folders. Quanto mais simples, menos chances pra erro né? 

 

Outra limitação era que não tenho as lixadeiras de cinta que eu era acostumado a usar na cutelaria, então teria que fazer esse serviço na lima, por isso não poderia fazer um canivete muito grande, mas também não poderia ser muito pequeno senão não conseguiria elaborar o mecanismo. 

 

Pra ideia foi utilizar o máximo possível de materiais reciclados, restos de outros projetos que eu tinha em casa. 

 

Então a partir de agora vou fazer uma pequena descrição dos passos envolvidos. Os vídeos são vídeos bem curtos que gravei pra postar em algumas redes sociais, por isso eles não são muito didáticos, mas espero que gostem.

 

Bem então eu escolhi fazer a lâmina a partir de um eixo de 8mm que tenho, sabia que era aço 52100, um excelente aço, mas tem suas dificuldades. 

 

Iniciei forjando uma lâmina, forjando quase no formato final.

 

 

Após o processo de forma é necessário aquecer o aço até cerca de 850° e deixar esfriar bem lentamente. Pois quando se aquece o aço até o ponto de forjar, ocorre uma reação interna que é a formação de austenita com grão muito grande, ela quando esfria rapidamente se transforma em martensita, que é o que se busca na têmpera. Mas como o processo de forjar ocorre em temperatura superior a da têmpera, esses grãos formados ficam muito grandes e quebradiços, na foto abaixo pode ser comparado isso.

 

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Reparem como ficou uma estrutura muito grande dessa peça da esquerda, dentro do círculo roxo. Está imprestável para uma lâmina.  Então o que precisa fazer? Aquecer até cerca de 850°C e deixar esfriar bem lentamente, assim a austenita vai se transformar em ferrita, que é muito mais mole, podendo assim ser lixada, até dar o formato da lâmina. Na peça a direita vemos o que acontece quando feito isso, embora não de pra ver muito bem, mas repare dentro do círculo rosa que não tem aquela estrutura de grãos tão grande. Uma prova de que ficou mole é que eu pode cortar com uma serrinha de arco quase inteiro a barrinha. Deixei apenas um pedaço faltando para quebrar e analizar a estrutura do grão. 

 

A partir de ter um linguote forjado e amolecido eu poderia assim limar até dar o formato da lâmina.  Vemos na foto abaixo a lâmina formada, na esquerda vemos a ponta de uma lâmina quebrada, no caso a mesma que usei pra exemplificar um modelo imprestável, logo em seguida podemos ver um segundo pedaço da lâmina que foi forjada novamente e feito o correto tratamento térmico.

 

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Aquele pequeno desbaste no topo da lâmina precisa ser feito junto com a mola do canivete, pois precisam ter um encaixe preciso, sem folgas, sem jogo, para isso, fiz tudo o desbaste utilizando limas.

 

O desbaste da lâmina fiz até chegar em 0,3mm. 

 

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A geometria de fio é mais importante em uma faca do que a própria têmpera, ou seja, uma geometria de fio bem executada garante um poder de corte maior do que uma têmpera bem executada. Por isso afinei até esse 0,3mm antes da têmpera. Após a têmpera fiz o desbaste até chegar em 0, ou seja, afiei ela. 

 

Para a mola, do canivete, eu moldei ela inteiramente utilizando limas e um arco de serra. Utilizei aço 1070, que foi temperado e depois revenido até a têmperatura suficiente pra alcançar o efeito mola (acho que o nome da peça já é bem sugestivo).

 

A ação do conjunto pode ser vista nesse vídeo.

 

 

As talas do canivete utilizei umas chapas de aço inox que tinha e advinha? Também moldei elas no formato utilizando apenas limas. 

 

Para as talas de madeira, utilizei um pedacinho que sobrou de madeira que utilzei para minha yanagiba ( faca para sashimi). Essa madeira eu acho estremamente linda, é o jacarandá violeta, espécie em risco de extinção, proíbido de ser cortada, então foi muito difícil de conseguir, mas encontrei um vendedor que tem. Me certifiquei de ser madeira legal, vinda de reciclagem de dormentes.

 

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Um dos problemas do canivete é fazer com que a lâmina fique alinhada quando fechada e isso estava sendo um problema para mim.

 

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Esse desalinhamento pode ser causado por fazer o furo de alguma das talas desalinhado, fazer o furo da lâmina desalinhado, a lâmina não estar com ambos os lados feito um desbaste correto de forma a estar bem paralelo. Depois de tentar muito resolver esse problema, desisti e resolvi aceitar que seria um erro em meu primeiro canivete, então decidi seguir em frente.

 

Nisso me esbarrei em outro problema, minha humilde forja de cimento refratário estava se desfazendo, então eu precisava fazer uma nova. Dessa vez comprei uma manta de cerâmica e fui pedir em uma empresa q fura poço se eles tinham algum pedaço de cano que seria jogado fora, se eles poderiam me arrumar. Então eles gentilmente me deram um pedaço que era exatamente o que eu precisava, e além disso ainda cortaram no tamanho que eu precisava e cortaram 2 anéis das pontas que usei pra fazer as tampas, tudo cortado no torno. Se eu fosse comprar o cano num ferro velho ia sair uns 90 reais, mais uns 30 reais pra um torneiro cortar as tampas. Enfim, depois de pegar uma máquina de solda emprestada, fui na casa do meu "aluno"  fazer aquele cano se tornar uma forja funcional.

 

 

 Hora de testar o resultado. Mete o gás, secador de cabelo ligado e fire in the hole....

 

 

Mas antes de temperar, fiz diversos corpos de prova com uma barra redonda de 52100 de 4mm temperava e ia quebrar ela com o martelo pra analizar a estrutura do grão. Bem, lembra que eu falei da austenita? Então o objetivo é aquecer o aço até a formação completa (ou quase) da austenita porém sem elevar demais a temperatura que causaria a o fenômeno dos grãos crescidos. A ferrita (ou ferrite, não sei ao certo qual é o correto em português) é um estado mole do aço, quando se aquece e se transforma em austenita, a molécula se arranja em outro formato que se resfriado imediatamente como é o caso da têmpera, forma a martensita, que é muito duro, o nosso querido aço temperado.  Para o 52100, estudos apontam que 830° é a temperatura ótima, o difícil era encontrar o ponto exato para fazer isso usando como base apenas a cor que o aço estava. Por isso fiz alguns corpos de prova temperava eles e quebrava pra ver se o resultado obtido era o suficiente, até que fui e fiz com a lâmina do canivete quando senti que estava encontrando um bom resultado. (Pretendo futuramente construir um forno de precisão, pois esse aço é muito bom, e com um forno de precisão eu consigo extrair o melhor resultado possível dele).

 

Bem, depois de temperada e revenida a lâmina (estimo que deve estar entre uns 58 e 61HRC pelo que estive lendo, que é uma boa dureza, vai reter muito o fio dela) fui finalizar o desbaste da lâmina que ainda estava em 0,3 mm fiz o desbaste em uma pedra, depois fui para as lixas manuais fazer um polimento na lâmina.

 

 

Com a lâmina afiada e polida era hora de remanchar os pinos e assim prender definitivamente as peças do canivete. Pinos que foram feitos de inox.

 

Porém eu não queria que os pinos ficassem aparecendo na madeira, então fiz rebaixos nas talas de madeira pra esconder as pontas dos pinos e assim ficar todo mundo escondido e firme.

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Para as lixar as talas eu colei pequenos pedaços de balsa para dar mais firmeza e conseguir afinar mais elas e fazer o serviço, as talas tinham espessura próxima entre 4mm e 5mm eu lixei até que ficassem com aproximadamente 3mm os furos que escondem os pinos tem 1,5mm. Então era hora de colar as talas com epoxy. 

 

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E um simples teste de afiação me mostrava que estava satisfatório.

 

.

Mas ainda não estava contente, queria resinar a madeira, então apliquei resina epoxy e deixei curar por 24h.P_20210621_191825-01.jpeg.1eaa7e3e00ea0de9edea20909c6536ae.jpeg

 

Depois lixei o excesso até ter uma superfície reta polida como se fosse vidro. 

 

No dia que gravei esse vídeo, o canivete tinha sido guardado um pouco humido então estava criando pequenos pontos de oxidação na lâmina.

 

 

 

Parece que estou tremendo, mas é que estou tremendo mesmo de medo de tentar fechar com uma mão e a lâmina corta meus dedos. Mas no fim deu tudo certo. 

 

Melhor ainda, lembra que eu disse que minha lâmina estava ficando torta quando fechada? Então por algum motivo do qual não consigo explicar, quando remanchei os pinos ele alinhou a faca e ficou no lugar correto. 

 

(Estou sem a foto, mas vou providenciar logo, e inserir aqui mostrando o detalhe da lâmina alinhada) 

 

E esse foi o resultado final.

 

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Espero que gostem. Um abração a todos e ótimas pescarias, sempre!

Editado por Rodrigo Ribeiro
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  • Administrador

Conforme já havia comentado com você, ficou muito bacana. :) 

 

Parabéns por colocar a mão na massa e pelo resultado, além do estudo das fases, transformação e constituintes estruturais, me fez lembrar de algumas aulas de mecânica. :D 

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Primeiramente obrigado @André Ribeiro Tenho estudado bastante o knife steel nerds, aprendendo conteúdo de metalurgia bem direcionado ao cuteleiro. Na verdade acho que é mais um blog, escrito por um Dr em metalurgia.... É interessante pois lá ele mostra, testa e compartilha tudo em termos científicos... Estou até querendo montar um forno de precisão pra extrair o melhor do 52100.

 

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